Artigo de Opinião “Não acredito na democracia”

Escrito por Hélder Fontes

Celebramos, recentemente, o facto de termos vivido mais dias em liberdade que em ditadura. Comemoramos, também, há dias, o 48º aniversário da revolução que deitou por terra o regime deplorável em que vivíamos. Foram 14499 dias de condicionamento, miséria, pobreza, censura e terror que ficaram para trás, num verdadeiro período negro da história portuguesa. Contudo, nem todos celebraram esta data ou, se o fizeram, foi com muitas reservas. Infelizmente, nem todos olham com bons olhos para a data que nos une nem para as suas conquistas.

É característico do pensamento conservador achar que as instituições de uma determinada época adaptam-se às necessidades da sua população e que, por isso, não é necessário nenhuma sublevação popular, a menos que valores absolutamente fulcrais do contrato social estejam em perigo. Aliás, é base deste pensamento que qualquer sublevação não é só desnecessária como perigosa. Existem vários exemplos que o demonstram. O mais notório talvez seja o de Edmund Burke que, ao criticar a revolução francesa de 1789 e o apoio que esta tinha em Inglaterra, deitava por terra todo e qualquer fundamento que justificasse a revolta do povo francês (parece que um regime que deixava a esmagadora maioria da população na miséria e a sobreviver em condições abjectas não atentava aos valores fulcrais do contrato social).

Se havia razões para criticar o período do Terror da revolução francesa, quando transpomos esta linha de pensamento conservadora para o caso português ela fica sem fundamento. Imaginem em meados do século XX um regime que permitisse que uma fatia imensa da sua população nunca tivesse visto um hospital ou um centro de saúde. Ou então, um regime que deixasse um quarto dos seus concidadãos sem saber ler nem escrever e a vasta maioria na ignorância. Ou, ainda, um regime que fechasse os olhos a uma imensidão que não possuísse água canalizada, electricidade, e vivesse em condições de insalubridade. Os mais velhos não precisam de imaginar – foi assim que viveram parte das suas vidas.

O regime não se adaptou às necessidades evolutivas da população, nem tampouco o quis fazer. Foi deixando-as cada vez mais na sombra, na ignorância e na miséria, pois eram condições sine qua non para a própria subsistência do regime. A tese de que as condições de vida dos Portugueses estavam a melhorar não passa no teste dos números e das vivências. Foi a sublevação dos militares e populares a 25 de Abril que rompeu esse passado tenebroso e permitiu as conquistas que hoje tomamos como adquiridas.

É inegável a melhoria das condições de vida da esmagadora maioria da população. É incontestável o aumento das qualificações dos Portugueses. É inquestionável o acesso gratuito a um sistema de saúde. Ignorar tais conquistas é como tapar o sol com uma peneira. O que é contestável e questionável é acreditar que estas melhorias significativas poderiam advir do regime que vigorava em Portugal ou de ligeiras alterações no mesmo. Basta olhar para exemplos de regimes opressivos espalhados pelo planeta para verificar que tal não ocorre. Isto não é o mesmo que dizer que as revoluções são, per se, a locomotiva da história. Uma revolução pode ser a faísca para a mudança, isto é, pode ser condição necessária, mas está longe de ser suficiente. É preciso muito mais que isso. É essa a grande falha do pensamento conservador – tomar todas as revoltas por iguais. Por isso mesmo se torna incompreensível a tomada de posições de alguns ilustres quando colocam em causa a data que permitiu esta ruptura e que nos agrega. Parecem mesmo não acreditar na democracia que vivemos.

Numa altura em que cada vez mais aumentam os que se opõem às conquistas de Abril, urge não só relembrar esta data como defendê-la de todos os que querem regressar a um estado de opressão e repressão. A nossa democracia não é um dado adquirido e morrerá sem um esforço colectivo permanente. Este terá de ser feito tanto pela população, que deve informar-se e ser politicamente activa, como pelos actores políticos, que devem compreender os anseios e preocupações do seu eleitorado. É essa, talvez, a principal base do contrato social que inauguramos a 25 de Abril.

Infelizmente, o esforço mínimo feito por ambas as partes coloca em causa tudo o que já foi construído e leva a um maior distanciamento que, por sua vez, coloca novamente tudo em causa. Estamos no meio de um ciclo vicioso que, ao contrário do que o próprio nome poderia indicar, não se irá perpetuar. Se continuarmos por muito tempo neste estado, o crescimento exponencial de movimentos extremistas vai levar a nossa sociedade à ruptura. Torna-se premente combater tal evolução. Existem inúmeras democracias espalhadas pelo mundo que, não se sabendo cuidar, deixaram de ostentar o termo “liberal”. Cabe à sociedade civil intervir e mostrar que tem algo a dizer quanto ao caminho a percorrer. Cabe aos intervenientes políticos a gestão da vontade popular maioritária e a melhor alocação possível dos recursos comuns. A chamada de atenção serve igualmente para os que crêem que não existe condicionamento, seja pelas circunstâncias, seja pela própria organização da sociedade. Acreditar que tal estado de não-condicionamento, pode ser possível é, para além de utópico, irresponsável e uma forma encapotada de admitir que não acreditam em democracia.

Os Delfins ainda hoje exibem o título de uma das melhores bandas do pop-rock nacional e marcaram toda uma geração. Passaram uma mensagem tão vincada que creio que a letra de “A queda de um anjo” ficou presa no subconsciente de alguns:

“Ontem liam evangelhos

Hoje é lei a constituição

Mas que ninguém me dê conselhos

Nunca gostei que a maioria

Organizasse o meu dia-a-dia

Não acredito em democracia”

Hélder Fontes

Engenheiro Químico e Pós-Graduado em Ciência Política/História do Pensamento Económico

Autor no blogue ideal-social.com

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